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Aspectos da conceituação do trabalho em Marx: a alienação como abstração concreta
author
Eric Crevels
Abstract
This article covers a question relative to the double determination and dialecticity in the concept of labour, as developed by Marx from the Hegelian dialectics. It seeks to demonstrate the ontological significance of the concept to the Marxian thought, a key element in his critics as a path to self-conscience and as a territory for alienation. Through the inquiry on the concepts of abstraction concreteness in relation to labour, it hopes to clarify its employment and epistemological reach as it provides an understanding of alienation as a process of abstraction that, projected in the social relations of production, becomes concrete.
Introdução
De especial importância para a teoria marxista, o conceito de trabalho foi explorado por diversos intelectuais e é ponto central na crítica ao modo de produção do capital e seus desdobramentos. Contudo, a abrangência e aplicabilidade do conceito permanecem de difícil compreensão, sobretudo para novatos na teoria marxista, e são tema frequente de disputa. A derivação de Marx da conceituação hegeliana do trabalho como formador da autoconsciência lhe implica dimensões ontológico-filosóficas que são fundamentais para o entendimento do conceito em toda sua capacidade crítica. No entanto, a própria riqueza dialética que lhe confere potência filosófica implica uma grande multiplicidade interpretativa, de difícil esgotamento. Apesar de proporcionar relativa dificuldade na apreensão do conceito, essa multiplicidade é menos um defeito que uma qualidade, própria à dialética, que possibilita o desenvolvimento de leituras específicas e fomenta o pensamento crítico.
Por essa razão, buscou-se neste artigo um objetivo duplo: contribuir para o esclarecimento do tema, evidenciando alguns aspectos da conceituação do trabalho em Marx, e propor uma interpretação singular do conceito de alienação, partindo de conceitos e categorias do pensamento hegeliano. Espera-se que este trabalho possa auxiliar na compreensão dos conceitos de trabalho e alienação, somando à sua multiplicidade interpretativa novas leituras e possibilidades filosóficas e contribuindo para o avanço da teoria marxista. Para tanto, em um primeiro momento, são apresentados pontos do desenvolvimento do conceito do trabalho, até sua formulação como formador da autoconsciência em Hegel e sua passagem para Marx. Explora-se então a chamada dupla determinação do trabalho, evidenciando as suas dimensões abstrata e concreta a partir das categorias hegelianas. Posteriormente, é tratado o conceito de alienação e sua manifestação enquanto uma abstração concreta, realizada por mediações de segunda ordem como a propriedade privada e a divisão social do trabalho. Por fim, são analisadas as dimensões subjetivas da alienação, como abstração da realidade e estranhamento do sujeito e seus desdobramentos na formação consciência.
A conceituação do trabalho em Marx
As divergências na conceituação do trabalho são inúmeras. O termo deriva do latim tripalium, referente a um instrumento de tortura
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O tripalio, literalmente “três estacas”, foi um instrumento de tortura constituído por três estacas de madeira, nas quais o flagelado era suspenso, utilizado em civilizações cristãs em substituição à crucificação. Fonte: TRABALHO. Dicionário Etimológico: etimologia e origem das palavras. Disponível em: <https://www.dicionarioetimologico.com.br/trabalho/>. Acesso em 10/10/2019
. De maneira similar, o termo “labor” (também em inglês como labour) está associado originalmente à ideia de grande esforço físico, à dor e à fadiga (lavoro) (Williams, 1983, p. 176).
Ambos são utilizados para traduzir o termo alemão Arbeit, empregado por Hegel e também Marx em seus escritos, cuja etimologia uma vez mais aponta perspectiva pejorativa (Kluge, 2010). Esta tendência linguística demonstra a visão do trabalho como um fardo, concepção estabelecida na sociedade helênica, representando a atividade humana produtora que visava puramente à satisfação de “necessidades de sobrevivência” – o trabalho não fazia parte da vida ou da constituição do “cidadão pleno”, sendo de incumbência dos escravos e das mulheres (Schwarz, 2011, p. 23). A vinculação do conceito de trabalho com a tortura e o sofrimento (também relacionado ao toil, em inglês) (Williams, 1983, p. 177) incorre em uma divisão socioeconômica e distintiva que separa o trabalho de outras formas de atividade humana como a arte, a teoria e a ação política (práxis) nas suas representações sociais e reconhecimento simbólico
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A distinção também se reflete em uma série de correntes discordantes quanto a um suposto “surgimento” ou “origem” do trabalho. Schwartz (2011) aponta três entendimentos recorrentes: a visão neolítica, com o surgimento de ferramentas, uma sedentarista, com argumento no desenvolvimento da agricultura, e a terceira, que classifica o trabalho apenas na sua concepção capitalista, posterior à industrialização
. Tal divisão qualitativa entre as atividades humanas persiste em pensamentos modernos: a classificação de Hannah Arendt (2007) distingue, nas “atividades humanasfundamentais”, as formas de “trabalho”, “obra” e “ação”, relativas, respectivamente, à subsistência corporal e física, à produção material e à ação política. Grandemente influentes no pensamento filosófico moderno, esses entendimentos mantêm uma linha geral quanto à inferioridade do trabalho em relação a outras atividades humanas, em especial à ação política e à arte.
Do ponto de vista geral, o trabalho seria de fato uma tortura à qual a humanidade estaria fadada até segunda ordem e que representa nada mais que a manutenção material e biológica da vida. Sem relevância para a conquista da “verdade”, o trabalho não estava em pauta nas correntes do pensamento filosófico do Esclarecimento e, especialmente, era ponto também ignorado pelos pensadores comumente relacionados ao idealismo alemão (Schäfer, 2011). Autores como Kant e Fichte defendem ser o espírito crítico o argumento central da autodeterminação racional da vontade e, portanto, refutam a atividade material e considerações socioeconômicas como impedimentos à autonomia, focando-se nos aspectos metafísicos do devir em suas teorias.
Curiosamente, o trabalho só voltou a ser explorado teoricamente no âmbito da economia política inglesa clássica, em autores como Adam Smith e Stuart Mill (Williams, 1983). Sua interpretação de que as riquezas das nações são originárias ulteriormente no trabalho humano refuta as explicações de caráter objetivo (como as dádivas da natureza) e inverte a noção de que a atividade contemplativa, moral ou política (trabalhos não produtivos) tem mais peso constitutivo na sociedade que as atividades de produção (Schäfer, 2011).
Finalmente, buscando superar a fixação do idealismo alemão na dicotomia entre sujeito e objeto, Hegel traz para sua filosofia o conceito de trabalho a partir da visão da economia política inglesa e o incorpora na sua lógica dialética. A procura do “absoluto” como resolução da dicotomia idealista traz em suas premissas o retorno de valor aos aspectos objetivos como constituintes da formação humana para alcance da “verdade”:
Vale destacar que, para Hegel, não obstante a vontade moral buscar sempre se autodeterminar desde um conteúdo universal, por isso
mesmo inteligível, ela não prescinde do interesse particular. Isso significa, concretamente, que a ação da vontade deixa marcas no espaço e no tempo, pois ela se dá um conteúdo, mas este conteúdo não é dado a partir de um puro Sollen, mas com base num Sein, numa existência real, inerente às leis, aos usos e costumes que correspondem a um povo determinado (Schäfer, 2011, p. 3).
O trabalho surge então como princípio formador do homem, ao relacioná-lo com a exterioridade da sociedade e permitindo-o acesso à autoconsciência. Para Hegel, a autoconsciência só se torna verdadeira quando confrontada com a alteridade; precisa ser reconhecida externamente. Neste contexto, “linguagem e trabalho são exteriorizações nas quais o indivíduo não se conserva nem se possui mais em si mesmo; senão que nessas exteriorizações faz o interior sair totalmente de si, e o abandona a Outro” (Hegel, [1806] 1992, p. 198). O trabalho, enquanto objetivação do homem (Mensch) no mundo, é portanto ponto chave na conexão entre subjetividade e objetividade (Ashton, 1999, p. 4). Nas palavras de Marx, Hegel concebe o trabalho, “embora em termos abstratos – como o ato de autocriação do homem; [que] apreende a relação do homem a si mesmo como ser estranho e a emergência da consciência genérica e da vida genérica como a demonstração de si como ser estranho” (Marx, [1844] 2001, p. 188).
Já Marx considera que é pela produção material que a humanidade se torna o que é. O trabalho, segundo o autor, é a mediação que estabelece a unidade entre homem e natureza, ao mesmo tempo como um intercâmbio material e um processo social humano 3 O entendimento de natureza de Marx ultrapassa aquele utilizado no cotidiano e o presente nas discussões ambientalistas, pois inclui, ao aceitar a natureza como “corpo inorgânico do homem” (Marx, 2004, p. 84), a natureza que é modificada pelo trabalho humano. Incorpora, por exemplo, os aspectos históricos, culturais e sociais da sociedade como partes de um contexto “natural” no qual o indivíduo se insere. . O trabalho “é a ação dos homens sobre a natureza, modificando-a intencionalmente” (Marx, 2013, p. 247), e neste sentido implica, além da dimensão natural, uma dimensão essencialmente humana (Oliveira, 2010). Lukács (2013, p. 51) afirma que, no entendimento de Marx, é pelo trabalho que o homem cria a realidade e, não somente, mas que se constitui a subjetividade que permite o salto entre a mera existência e a sociabilidade. Gera, neste sentido, a exterioridade necessária para a formulação da autoconsciência.
Na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é
sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como sua obra e sua efetividade (Wirklichkeit). O objeto de trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele (Marx, 2004, p. 85).
É possível perceber, portanto, que também para Marx o trabalho realiza a objetivação do homem no mundo, assim como entendido por Hegel. De fato, foi a partir do entendimento da dialética hegeliana que Marx construiu sua crítica da economia política e a teoria do valor na sociedade capitalista. No entanto, Marx insiste que a cultura, e ulteriormente a história, são frutos da atividade humana, em um processo objetivo de transformação da natureza no qual os trabalhadores exteriorizam sua essência e se reconhecem no produto de seu trabalho (Meszáros, 2006, p. 45). A objetivação, assim, não é uma expressão do espírito por meio do trabalho – como quer Hegel , mas uma manifestação do homem enquanto ser agente, automediador, produtor de si e da natureza. Pela transformação do mundo objetivo, materialmente, o homem é capaz de se provar enquanto parte da natureza, que agora lhe aparece como “seu trabalho e sua realidade”, isto é, uma exterioridade na qual ele “pode contemplar a si mesmo”, por ser igualmente construção sua e componente de si (Arthur, 1986, p. 5).
A partir desse momento, o trabalho assume uma posição central na crítica do modo de produção do capital de Marx e, para ele, ponto igualmente central na construção de uma nova sociedade. Partindo dessa compreensão o filósofo urge pela criação de uma “nova ciência humana” que se contraponha à estratificação da filosofia e das ciências naturais e suas correspondentes abstrações (Meszáros, 2006, p. 21). O objetivo principal dessa ciência não é outro senão aquele que mais tarde centralizará suas concepções sobre o socialismo. Marx procura, para a filosofia e para a sociedade em geral, o pleno desenvolvimento da natureza humana. Vale notar que o entendimento marxiano de “desenvolvimento” segue a afirmação de Aristóteles, de que “[o] que cada coisa é, quando plenamente desenvolvida, é que chamamos sua natureza” (1997, I, cap 2). Como demonstra Petrovic, no centro dessa concepção de desenvolvimento humano encontra-se a atividade, na medida em que o conceito de práxis “torna-se o conceito central de uma nova filosofia, que não quer permanecer como filosofia, mas transcender-se tanto em um novo pensamento metafilosófico como na transformação revolucionária do mundo” (Petrovic, 2001, p. 293). Portanto, o objetivo de Marx consiste no desenvolvimento do próprio homem em sua atividade de automediação, em interação com o mundo onde se desenvolve. A automediação do homem por sua atividade produtiva – o trabalho – se torna então não apenas um meio, mas o próprio fim da realização humana (Fromm, 1962).
Trabalho abstrato e trabalho concreto
Tanto Hegel quanto Marx destacam, no entanto, a existência de um caráter dialético do trabalho, formador (bildend), por um lado, e alienante, por outro: o trabalho que forma o homem ao conectá-lo com o contexto social e natural é o mesmo que, contraditoriamente, gera pobreza e estranhamento do indivíduo, conforme sua produção já não é mais determinada por ele, mas pela exterioridade com a qual se relaciona.
Apesar de reconhecer o potencial alienador do trabalho, Hegel acredita que sua existência é imanente ao processo de desenvolvimento da autoconsciência geral em curso no desenvolvimento da modernidade (Meszáros, 2006, p. 85). Marx, no entanto, acredita que essas contradições não são características inerentes ao trabalho, mas antes reflexos das relações sociais de produção em que o trabalho está inserido. Segundo Meszáros, o seu entendimento parte da interpretação de que a economia política clássica “concebe uma forma particular de atividade (divisão capitalista do trabalho) como a forma universal e absoluta da atividade produtiva” (Meszáros, 2006, p. 87). Marx argumenta que o desenvolvimento de um conceito ocorre somente quando as particularidades abarcadas por ele se tornam evidentes nas relações sociais, tornando então possível sua análise frente à realidade social. Portanto, a conceituação do trabalho no modelo da economia política clássica tem razões históricas: surge quando as relações sociais engendradas pelo capital e ampliadas com a revolução industrial tornaram necessário quantificar o trabalho para tornar suas atividades concretas e particulares comparáveis segundo uma medida abstrata e geral. A generalização do trabalho humano nas construções teóricas, desta forma, é análoga a uma generalização do trabalho na realidade social e, assim, o trabalho deve ser entendido sob dois aspectos:
[O] trabalho específico de um trabalhador particular (chamado em O capital de “trabalho concreto” — uma “atividade produtiva de um tipo definido e exercida com um objetivo definido”) e o não específico “trabalho abstrato”, definido como “dispêndio de trabalho humano
em geral” 4 (Stanek, 2008, p. 67).
Para descrever as dimensões abstrata e concreta do trabalho, Marx se apoia na lógica dialética de Hegel. O abstrato, ou a abstração, tem o significado de subtrair, retirar. Refere-se ao que foi isolado, retirado do contexto das relações sociais, e está associado, portanto, à ideia indeterminada, à forma pura. Abstrair quer dizer separar, e é empregado na constituição do pensamento lógico: “aquele que abstrai qualquer conteúdo, qualquer determinação, […] a estrutura do pensar de forma lógica sem conteúdo determinado” (Fernandes, 2010, p. 55). No texto Quem pensa abstratamente? (Hegel, 1995), o pensamento abstrato é aquele do povo comum que, ao deparar-se com a figura de um assassino, ignora tudo aquilo relacionado à sua pessoa – sua criação, ambiente familiar, condição financeira – que não é abarcado na sua definição como assassino. O pensamento abstrato, portanto, retira o objeto de seus contextos e analisa-o separadamente. Ilienkov afirma que, quanto ao abstrato,
Hegel o interpreta (assim como Locke o fez, mas não Mill ou os escolásticos) como qualquer coisa geral, qualquer similaridade expressa
em palavra e conceito, uma simples identidade de um número de coisas com outra, seja ela uma casa ou brancura, homem ou valor, cachorro ou virtude (Ilienkov, 2008, p. 16-17).
O conceito do abstrato, em Hegel, é o começo do ser puro, “absoluto, imediato, sem determinações” nem fundamento (Fernandes, 2010, p. 56). Desse modo, é preciso que seja indeterminado, isento da possibilidade de comparação e, portanto, sem relação com um outro diferente. É conseguido pela extração de uma representação mental da realidade empírica, transformada em forma pura, imediata (Inwood, 1997). Deve ser considerado, no entanto, como uma ação mental, logo, epistemológica. É uma categoria do pensamento que, no entanto, para Hegel, representa a verdade em sua unidade primordial, que também é sua unidade última, devido ao processo dialético (Marcuse, 1978 p. 101). É também por essa razão que o entendimento de Hegel é considerado como idealista, ainda que “muito mais ‘inteligente’ do que o idealismo subjetivo de Kant”, como apontado por Ilienkov:
O idealismo da concepção de Hegel do abstrato e do concreto consiste em que ele considera habilidade para sintetizar definições abstratas como uma propriedade primordial do pensamento, como um dom divino ao invés da conexão universal, expressa na consciência, de uma realidade percebida sensorialmente, objetiva, verdadeira, independente de qualquer pensamento. O concreto é em última análise interpretado como o produto do pensamento (Ilienkov, 2008, p. 18).
Marx adota o termo hegeliano do abstrato sem, no entanto, admitir que se trate do conhecimento (ou verdade) em si, devido à impossibilidade de sua redução em uma simples representação de objetos isolados da realidade empírica. Desconsideradas na constituição da verdade as relações entre os objetos, o próprio processo dialético que estabelece sua construção não estaria abarcado na realidade consequente. Marx, portanto, refuta a percepção idealista de que as ideias são precedentes sobre a realidade material e inverte a interpretação hegeliana, postulando que as abstrações “constituem o reflexo – não como contemplação, mas como prática sensorial – do mundo material na mente humana, implicando que a realidade material existe antes e independente da consciência” (Germer, 2003, p. 7).
O concreto, inversamente, além de realidade material é também uma categoria do pensamento, especificamente da dialética, e não deve ser confundido com o perceptível aos sentidos 4 Se, para Marx, a “verdade é sempre concreta” (Germer, 2003, p. 5), isto significa que a verdade não é a percepção sensível, ainda que esta remeta, em algum momento, ao concreto. As relações de produção, por exemplo, são concretas (abstrações tornadas concretas, sim, mas não menos concretas), ainda que se deem “às costas do trabalhador” e, portanto, seus expedientes “apareçam” como naturais, autoevidentes, ao trabalhador. . O pensamento concreto é aquele que engloba os contextos e, portanto, suas contradições, e constitui as bases do chamado pensamento crítico, que tenta não perder de vista as conexões e relações entre elementos ou isolar problemas. Envolve na sua concepção a relação de um objeto com outros, e, portanto, das determinações que nele estão presentes. Hegel o concebe como um movimento de natureza oposta ao abstrato, logo, determinado, mediato e relacionável: “unidade na diferença” (Marcuse, 1978, p. 110). O pensamento concreto, no caso do assassino, por exemplo, é aquele que considera o crime como um produto das relações sociais nas quais se desenvolve a vida do criminoso.
O concreto é interpretado por Hegel como unidade da diversidade, como unidade de definições diferentes e opostas, como expressão
mental dos vínculos orgânicos, do sincretismo da definitividade abstrata independente de um objeto dentro de um objeto específico determinado (Ilienkov, 2008, p. 16).
A “unidade da diversidade” também é a própria definição, segundo Chris Arthur (1986), que Marx faz do concreto. A partir de uma noção dialética da “unidade”, significando o ponto de relação, interface na qual características e momentos de um objeto dado se encontram e interagem, o concreto é interpretado como uma totalidade específica, “internamente dividida das várias formas de existência do objeto” (Ilienkov, 2008, p. 23). Deve ser entendido como “a apreensão do objeto analisado como o conjunto dos seus componentes inter-relacionados de modo definido, ou na estruturação interna do objeto” (Germer, 2003, p. 3). A partir desses conceitos, Marx descreve a determinação dupla do trabalho: ele é concreto, porque é sempre trabalho específico de um trabalhador particular, com habilidades e objetivos específicos, inserido num contexto particular; e ele é abstrato, porque é, também, dispêndio de trabalho humano em geral, manifestação genérica da atividade produtiva humana.
Os desdobramentos dessa determinação podem ser identificados em diversos momentos da teoria marxiana, sobretudo em sua teoria do valor: lembremos que o produto do trabalho é, inicialmente, valor de uso, pois satisfaz necessidades humanas, sejam elas “do estômago ou da imaginação” (Marx, 2013, p. 113), isto é, sem distinção entre necessidades consideradas básicas para a sobrevivência e desejos e interesses outros. O valor de uso é referente à satisfação que o produto gera, seja ela qual for. O ponto chave, no entanto, é que ele se refere à uma necessidade determinada. Sua qualidade é concreta, inserida num contexto social específico e por ele definida. Logo, o valor de uso provém da dimensão concreta do trabalho. Refere-se à unidade individual da produção, que tem aspectos específicos de forma, técnica, duração, caráter cultural etc. Segundo Chagas:
[O trabalho concreto] não quer dizer uma substância metafísica, genérica, vaga e imprecisa, que não se põe na realidade histórico-social, mas sim como atividade de autodesenvolvimento e auto-realização da existência humana, atividade primária, natural, necessária e presente em todas as formas de sociabilidade humana, inclusive na capitalista, pois o trabalho útil-concreto, embora esteja aqui em benefício do capitalista ou sob seu controle, não muda sua essência, que é atividade dirigida, com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais que sirvam para satisfazer as necessidades humanas (Chagas, 2011, p. 4).
Já a dimensão abstrata do trabalho só se torna relevante nas sociedades em que o capital passa a reger a produção social e em que, mais do que valores de uso, produzem-se mercadorias. Só assim pôde a economia política clássica entender o trabalho como grandeza quantificável pelo tempo e comum às mercadorias, que permite compará-las e trocá-las apesar de possuírem valores de uso incompatíveis. Para possibilitar a comparação, é necessário abstrair das mercadorias seus aspectos específicos e deixar-lhes apenas o que lhes é comum: a quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua produção, medida pelo tempo nelas despendido. Como no modo de produção do capital a produção de mercadorias se dedica primariamente à venda, o chamado “valor de troca”, valor que a mercadoria adquire especificamente por sua “vendabilidade”, passa a ser mais dominante na produção que os valores de uso (Marx, 2013, p. 114). Dessa maneira, ao contrário do trabalho concreto, o trabalho abstrato não se refere à transformação da natureza pelo homem, um acontecimento real efetivado de maneira mediata e determinada, mas ao trabalho genérico.
No entanto, na particularidade das relações sociais no modo de produção do capital,
[t]rabalho abstrato não é, para Marx, nem simples generalização (generalização não posta), trabalho em geral (generalidade fisiológica, universalidade natural, como gasto de cérebro, músculos e nervos humanos), nem um constructum subjetivo do espírito, uma abstração imaginária, um conceito abstrato, ou um processo mental de abstração, exterior ao mundo, mas sim uma abstração que se opera no real, uma abstração objetiva do trabalho no capitalismo, a homogeneidade, a redução, a simplicidade, a equivalência, o comum do trabalho social cristalizado num produto, numa mercadoria, que é trocada por outra, a fim de se obter mais-valia (Chagas, 2011, p. 8).
Marx argumenta que a conceituação do trabalho como grandeza genérica retrata uma realidade subjacente nas relações sociais de produção, nas quais as abstrações tornam-se concretas ao serem projetadas na dimensão concreta. Segundo Stanek (2008), Marx percebe este fenômeno, no âmbito do trabalho no modo de produção capitalista, como uma “abstração concreta”. O acontecimento do trabalho, ou melhor, sua realização na prática, seria então um processo no qual a abstração do trabalho, na forma de uma transformação da força de trabalho em mercadoria, é efetivada na dimensão concreta. Isto é, o trabalho abstrato, trabalho humano genérico e não personalizado, se reflete sobre o trabalho concreto, real e útil, como uma projeção das relações sociais de dominação. Este fenômeno se dá objetivamente por meio de dispositivos e instrumentos técnicos,
como a divisão hierárquica do trabalho e desconstrução do ofício (Feenberg, 2010). Trata-se, desta forma, de uma generalidade abstrata que é produzida e reproduzida nos processos sociais de produção e mantém uma relação dialética com esses processos, reproduzindo-os também. As relações de trabalho, concebidas a partir de uma construção abstrata de trabalho, destacada da realidade, retornam à realidade e reconfiguram o trabalho concreto, dominando-o segundo seus próprios registros.
Alienação como abstração concreta
Na dialética do mestre e escravo, detalhada em A Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1992) a relação entre o mestre e o escravo se localiza no trabalho, pois é ele que caracteriza a própria existência do escravo: “seu ser é o trabalho”, como diz Marcuse (1978, p. 116). O propósito da existência do escravo, subjetivamente, está na objetividade do seu trabalho, isto é: a categoria “escravo” só pode ser compreendida a partir da existência de uma relação de produção particular – a escravidão – que lhe dá sentido. O escravo só existe concretamente em função de uma relação social essencialmente manifesta no âmbito do trabalho. A vida do escravo tem como objetivo a produção da sobrevivência do mestre e, dessa maneira, é instrumental, um “ser-para-outro” (Hegel, 1992, p. 149). Como é ele quem trabalha na interface que caracteriza a relação entre ambos, sua própria existência se torna coisificada, reificada: “se torna uma coisa cuja existência mesma consiste no fato de ser usada” (Marcuse, 1978, p. 116-117). Por outro lado, o escravo encontra, sob a forma concreta do mercado e das técnicas tradicionais, o externo constituinte na produção que realiza para o mestre, e não somente, mas se vê exteriorizado nessa produção (Hegel, 1992, p. 149). Sob essa perspectiva, o mestre, separado da realização material de sua vida, se encontraria impossibilitado de acessar a exterioridade necessária para a realização de sua autoconsciência. Para Hegel, no entanto, este não é caso: o mestre, ou senhor, também é capaz de ascender à autoconsciência pelo uso do produto do trabalho que recebe (ou toma) do escravo. Hegel crê que a externalização do mestre se torna possível pois assume que pelo desfrute, a manipulação, ou melhor, pela apropriação e consumo dos produtos do trabalho alheio, ele se conecta com uma outra auto-consciência – aquela do trabalhador – e “desta maneira vem a perceber que ele não é um ‘ser-para-si’, independente” (Marcuse, 1978, p.117). A ascensão de mestre e escravo à autoconsciência é possibilitada por esse encontro, pois, no entendimento de Hegel, conforme colocado por Ashton:
O ego é o resultado de desenvolvimento, da sensibilidade imediata para a auto-percepção, e então para a autoconsciência adquirida através de uma reciprocidade de perspectivas nos relacionamentos interpessoais, e finalmente com a universalidade por meio da participação na vida cultural e ética 5 Traduzido livremente do original “[T]he ego is the result of development, from immediate sensitivity to self-awareness, then to self-consciousness gained through a reciprocity of perspectives in interpersonal relationships, and finally to universality through participation in ethical and cultural life”. (Ashton, 1999, p. 1).
O que isso representa é que o escravo, para Hegel, apreende a concretude da realidade, e não somente a sua, mas a do mestre, pelo trabalho que realiza para ele. Pela sua produção, ele gera a exterioridade que precisa para a formulação de sua própria autoconsciência. Também é o trabalho que permite ao mestre o mesmo processo, mas mediado pelo produto, pela coisa, que o escravo produz e que lhe satisfaz uma necessidade. No entanto, nesse mesmo fenômeno, o homem se perde enquanto sujeito frente à externalidade, à medida que sua atividade não é definida por si, mas pelo outro. Na dialética do mestre e escravo, essa relação se dá à medida que o trabalho do escravo é imposto pela necessidade do mestre, ao passo que o mestre, por eximir-se do trabalho, só pode satisfazer-se a partir da objetivação do escravo, ficando preso às determinações particulares do seu trabalho (Marcuse, 1978). O trabalho, assim, se apresenta em duas relações com o homem, para Hegel (e também em Marx): uma positiva, do trabalho que forma, traz o indivíduo à autoconsciência pelo reconhecimento do outro e de si mesmo, pela relação entre o particular e o universal; e uma negativa, que tolhe o homem de sua subjetividade e subtrai-o de sua própria particularidade pelo uni-
versal, a saber: a alienação.
Contudo, para colocá-los em um contexto intersubjetivo o homem deve abstrair esses objetos conformados, deve transformá-los emmercadorias. O produto do seu trabalho se torna uma unidade universal por meio da sua troca no mercado. As mercadorias que o trabalhador produz e então vende se tornam o método com o qual ele é reconhecido pelos outros, mas esse processo de produção de um objeto que objetifica a subjetividade do trabalhador e então abstrai o que é efetivamente sua subjetividade – o objeto que agora é uma mercadoria – significa que o trabalhador é alienado de sua própria subjetividade por si mesmo7 (Ashton, 1999, p. 6).
Hegel percebe o caráter negativo do trabalho como uma característica irremediável do processo de elevação do espírito à verdade. A alienação, tanto material como do “espírito” estaria na superfície de um processo maior de desenvolvimento de novas formas institucionais e sociais de solidariedade e moralidade que compensariam, por meio de ações do Estado, as mazelas consequentes; faz parte da contradição que, para o autor, caracteriza a essência dialética da Verdade (Marcuse, 1978, p. 95).
Marx aponta que, por este entendimento, Hegel cai em um contrassenso ao crer que as contradições que marcam o trabalho poderiam ser resolvidas no âmbito teórico. Portanto, recusa a leitura de que o trabalho alienado seria uma decorrência imanente ao progresso do espírito – infeliz, mas irremediável – e afirma que o trabalho alienado é antes fruto de uma realidade social determinada, ou seja, histórica.
À diferença de Hegel, Marx recusa que as mediações para as contradições que grassam na sociedade moderna possam ser forjadas no âmbito teórico. Embora aceite integralmente o desenvolvimento do método dialético tal como realizado por Hegel, sua aplicação não há de ser dada no âmbito ideal, mas na realidade histórica concreta (Schäfer, 2011, p. 8).
A refuta de Marx dá-se porque acredita ser justamente a abstração do trabalho na sociedade capitalista, em sua forma de valor de troca, a gênese da alienação do trabalhador. A perspectiva da abstração concreta permite a compreensão de que o aspecto abstrato do trabalho é resultado de uma série de processos econômicos, sociais, tecnológicos etc. que atuam na realidade concreta do trabalhador assalariado em forma de alienação. Esse processo é seu pano de fundo, seu território:
Quando o indivíduo abstrai seu trabalho, ele não somente ganha um senso de reconhecimento mútuo e os benefícios dos bens e serviços gerados pelo trabalho de outro homem, mas também, negativamente, perde o controle do seu próprio destino 6 Traduzido livremente do original “As the individual abstracts his labour, he not only gains a sense of mutual recognition and the benefits of goods and services generated by another man’s work, but he also negatively, loses control of his own destiny”. (Ashton, 1999, p. 7).
Em outras palavras, existe um balanço entre as normas individualmente estabelecidas e aquelas da universalidade que separam a alienação da autonomia. Meszáros (2006) aponta que, no entendimento de Marx, a questão é relativa ao surgimento de uma contradição nas mediações humanas, ao passo que as “mediações de primeira ordem”, as atividades de autodesenvolvimento essencialmente naturais, são permeadas por “mediações de segunda ordem” historicamente determinadas que as embaraçam e cerceiam. As mediações de primeira ordem são aquelas que permitem ao indivíduo a relação direta e dialética com a natureza. Representam a atividade fundamental humana de automediação na realidade concreta, o trabalho para si e por si, em “unidade imediata com seu objeto” (Arthur, 1986, p. 10, tradução minha). As chamadas mediações de segunda ordem, no entanto, desfazem essa relação de desenvolvimento mútuo, onde o homem cria o mundo e se inventa no processo. São imposições que criam uma relação de oposição entre o trabalho e seu objeto que, enfim, perpetuam o fenômeno da alienação como “um sistema de estranhamento no qual a atividade produtiva perde a si mesma e recai sobre o julgo de um poder estrangeiro [alien power]” (ibidem, tradução minha). O modo de produção capitalista, sob esta perspectiva, constrange as relações dialéticas entre homem e natureza, interpondo-se entre elas, de modo que se tornem relações de oposição, dicotômicas.
O mais evidente destes dispositivos, ou “mediação da mediação”, no modo de produção capitalista, é a propriedade privada 7 Isto não significa, porém, que para Marx a propriedade privada esteja em patamar diferente de outros expedientes da alienação. As mediações de segunda ordem estão fortemente interconectadas em uma estrutura que não detém contornos claros definidos. Sua ênfase no apontamento e crítica da propriedade privada têm motivos históricos, sobretudo em contraposição às ideias, presentes tanto em Hegel e nos autores da economia política clássica, de que a propriedade privada é uma manifestação natural e propriamente humana. Também deve à sua crítica a Proudhon, no sentido oposto, com o argumento de que a simples abolição da propriedade privada, sem mudanças das relações sociais de produção que a mantinham, não era o caminho para o verdadeiro socialismo (Alves, 2008). , mas ela não é o único. Meszáros (2006, p. 93) aponta também a divisão do trabalho e o “intercâmbio” (a forma especificamente capitalista da troca de mercadorias, o chamado “mercado”) como outras formas dessas “mediações reificadas”. Neste universo, estão interconectadas; o jogo entre a instituição da propriedade privada e a troca de mercadorias fornece a base operacional da divisão social do trabalho, por exemplo. Não obstante, operam todos no sentido da reestruturação das relações sociais de produção sob a dialética da abstração do trabalho:
Em geral, em toda formação social baseada na propriedade privada, o trabalho deixa de ser uma atividade positiva, livre e consciente, com a qual o homem se identifica, e se transforma numa atividade sob o controle de um outro, numa potência negativa, estranha e hostil ao homem. Particularmente, no capitalismo, a sociedade material que havia entre os trabalhos úteis-concretos, ligados externamente, passa a ser uma sociedade formal, articulada pelo trabalho abstrato, mas contra o trabalho útil-concreto (Chagas, 2011, p. 6).
Com a fragmentação e generalização do trabalho, o acesso à dimensão universal do trabalho pelo trabalhador é limitado, impossibilitado a sua conexão com a sociedade e o desenvolvimento dialético da autoconsciência. De maneira análoga à transformação do trabalho útil, particular, determinado, o trabalhador torna-se também genérico, impessoalizado e substituível enquanto mera força produtiva, e estranha sua própria atividade. Isto acontece duplamente: por um menor contato com as dimensões socioculturais do seu trabalho, construídas tradicional e historicamente e referentes a um universal histórico; e pelo afastamento em relação à própria atividade produtiva e, portanto, à efetivação de sua individualidade e subjetividade por meio do trabalho. De maneira análoga à transformação do trabalho útil, particular e determinado, o trabalhador torna-se também genérico, impessoalizado e substituível. Por fim, estranha sua própria atividade e “trata seu trabalho como mercadoria; como consequência, não tem interesse no trabalho em si, mas somente no salário” 8 Traduzido livremente do original “The labourer treats his labour as a commodity; as a consequence he has no interest in the work itself but only in the wage” (Arthur, 1986, p. 7). Quando transformado em mercadoria e subsumido ao capital, o trabalho perde suas qualidades humanas, deixa de ser um fim em si mesmo, como autodesenvolvimento do homem, e passa a ser meio de valorização do capital. Dessa maneira, se concretiza
a existência abstrata do homem como um puro homem que trabalha e que, por isso, pode precipitar-se diariamente de seu pleno nada no nada absoluto e, portanto, na sua efetiva não-existência. Por outro lado [trata-se] da produção do objeto da atividade humana como capital, no qual toda determinidade natural e social do objeto está extinta (Marx, 2004, p. 93).
O centro de gravidade da equação é o trabalho humano, que deixa de ser uma atividade vital e toma a forma de trabalho alienado (Arthur, 1986, p. 3). A dialética das mediações de segunda ordem configura os rumos do desenvolvimento da sociedade capitalista, em uma crescente complexidade de expedientes que reproduzem sua própria manifestação. Em outras palavras, são as formas sociais específicas do modo de produção do capital pelas quais se dá a abstração concreta do trabalho:
As mediações de segunda ordem mencionadas acima (institucionalizadas na forma de divisão do trabalho – propriedade privada – inter-
câmbio capitalistas) perturbam essa relação [de automediação do homem] e subordinam a própria atividade produtiva, sob o domínio de uma “lei natural” cega, às exigências da produção de mercadorias destinada a assegurar a reprodução do indivíduo isolado e reificado, que não é mais do que um apêndice desse sistema de “determinações
econômicas” (Meszáros, 2006, p. 80).
O corolário dessa relação é o “estranhamento do trabalhador das bases materiais de sua existência e atividade vital” (Arthur, 1986, p. 10). É neste processo que a exteriorização se identifica com a alienação, pois é na própria dimensão concreta do trabalho que se realiza sua abstração. Objetiva e subjetivamente, as atividades humanas, basilares à autoconsciência, reproduzem a dicotomia entre o particular e o universal e entre sujeito e objeto. Na dialética do mestre e escravo, o fenômeno é representado pela reprodução da relação de exploração, ao passo que a existência do mestre é mantida e garantida pelo próprio trabalho do escravo. Já na crítica de Feuerbach à filosofia de Hegel, reflete-se na posição do homem que, ao criar e colocar acima de si o ser absoluto e abstrato de Deus, curva-se ante a ele como escravo (Bottomore, 2001, p. 20). O trabalho humano, no lugar de servir ao trabalhador, culmina no fortalecimento da estrutura que o oprime; o produto último do trabalho humano se torna a negação do próprio homem. A realidade externa faz-se “hostil” ao indivíduo e o trabalhador, para objetivar-se, contrariamente, “desefetiva-se”, perde a si mesmo e renuncia sua subjetividade (Marx, 2004, p. 80).
Abstração, reificação e subjetividade
No entendimento marxiano, a relação do homem com a natureza é a base de sua capacidade crítica e de autorreconhecimento. Segundo Meszáros (2006, p. 80), a “atividade produtiva é então a fonte da consciência”; não pelo descobrimento de uma suposta “verdade”, mas porque o indivíduo desenvolve a si mesmo como parte fundamental do processo, quando ativa e pratica essa relação. O homem não se descobre, como sugerem a interpretação hegeliana e as cosmologias new-age, mas se cria, se inventa, se autoproduz. Desta forma, desenvolver a mediação homem-natureza é desenvolver igualmente o próprio sujeito. Todavia, a complexificação e estratificação desta mediação não potencializa tal conexão, antes o contrário. As várias mediações da mediação são níveis intermediários que impedem ao indivíduo manobrar e manipular sua realidade particular frente à universal e, portanto, o impedem de criar um senso próprio de identidade e agência. As determinações de seu lugar no mundo vêm de fora e formam a “consciência ‘alienada’, [como] o reflexo da atividade alienada ou da alienação da atividade, isto é, da auto-alienação do trabalho” (Meszáros, 2006, p. 80). Partindo deste pressuposto, vê-se que incorrem na abstração da realidade, no sentido de sua subtração e isolamento. A relação de mediação primária (a atividade produtiva, mediação homem-natureza) é substituída por relações parciais, historicamente constituídas de maneira que apareçam como autoevidentes e completas em si, “às costas do trabalhador” (Marx, 2001). Marx reconhece as mediações de segunda ordem como construções sociais reificadas, e assume que é por meio delas que se estrutura a “reificação das relações sociais de produção” no modo de produção capitalista (Meszáros, 2006, p. 93). O trabalho alienado, para o autor, é fruto das relações sociais de produção que pressionam constantemente sobre o trabalhador as formas de abstração de seu trabalho, concretizadas por estas mediações. Esse movimento tem como objetivo a exploração do trabalhador por meio da extração de mais-valia, possível somente com a instituição do valor de troca como unidade universal no cerne das atividades produtivas.
O resultado é a mercantilização das relações humanas: o indivíduo é abstraído em força de trabalho e reificado em mercadoria para tornar-se objeto alienável (também no sentido de vendável) ao capital. Para Marx, em uma sociedade capitalista plenamente desenvolvida, este é o único modo restante de objetivação dos indivíduos no mundo, e assim é reproduzido. Universal, impõe ao homem a necessidade de engajar-se com o mundo por uma lógica que lhe é essencialmente hostil. A mercadoria (da qual depende sua sobrevivência) só pode ser adquirida por meio da alienação de si mesmo; pela venda da sua força de trabalho ou de algum outro infortunado, a quem ele aliena. Para efetuar as atividades que o objetivam no mundo, o homem deve antes alienar a si ou a outros, anulando assim as possibilidades de autodesenvolvimento. A “sociedade capitalista”, diz Marcuse, “faz com que as relações pessoais entre os homens tomem a forma de relações objetivas entre coisas” (Marcuse, 1978, p. 257). Deste modo, as mercadorias aparecem para os indivíduos não como o que de fato são, mas se confundem com a própria efetivação de sua existência. Fromm afirma que o homem, transformado ele mesmo em mercadoria, só “conhece um meio de se relacionar com o mundo exterior: o de tê-lo e consumi-lo”, de forma que quanto “mais alienado estiver, mais a sensação de ter e usar constituirá sua relação com o mundo” (Fromm, 1962, p. 60).
O sistema capitalista relaciona os homens uns com os outros por meio das mercadorias que eles trocam. A condição social dos indivíduos, seu padrão de vida, a satisfação de seus desejos, sua liberdade e seu poder são inteiramente determinados pelo valor de suas mercadorias. As capacidades e os desejos dos indivíduos não entram na estimativa. Mesmo os atributos mais humanos do homem tornam-se em função do dinheiro, que é o substituto geral das mercadorias. Os indivíduos participam do processo social apenas como possuidores de mercadorias. Suas relações mútuas são as de suas mercadorias (Marcuse, 1978, p. 257).
Neste sentido, a alienação do trabalho é a alienação do homem de sua existência em meio à realidade concreta, como separação do homem daquilo que Marx caracteriza como sua essência: a atividade automediadora (Marx, 2001). É pela atividade que o homem entra em contato com a natureza e, sendo parte dela, consigo mesmo. Sem esta relação direta, a consciência de si enquanto indivíduo só pode ser fragmentada. Falta-lhe não somente uma parcela, mas a totalidade dialética e, desta maneira, o homem é também incapaz de definir a si mesmo em qualquer escopo para além de uma identidade abstrata. É desta consciência alienada que surge o chamado “estranhamento” 11 . Fenômeno no qual os indivíduos permanecem em um estado de descontinuidade subjetiva com a realidade e marcado sobretudo pelo sentimento de não pertencimento, de desconexão, pode ser considerado uma dimensão subjetiva. Do ponto de vista do trabalhador, o mundo é estranho, como que feito estrangeiro: está além de sua compreensão e, em sua perspectiva, imune à sua agência.
A Entfremdung, ou estranhamento, seria a realização da Entäusserung, alienação. Em outras palavras, a alienação enquanto separação do homem de seu produto, sua atividade, do gênero e dos demais homens acaba por gerar a Entfremdung – o estranhamento – do homem em relação ao produto, atividade, gênero e dos homens entre si. Melhor dizendo, tal separação acaba por forjar o antagonismo entre homem e produto, invertendo a relação de tal forma que o produto e a atividade tornam-se poderosos e estranhos frente aos indivíduos. E o gênero e os demais homens transformam-se de fins em simples meios de produção e reprodução da atividade humana (Costa, 2005, p. 4).
Não se deve perder de vista que o estranhamento é gerado inicialmente na dimensão concreta, material e cotidiana da vida, pela alienação. É nesta dimensão que se estabelece a conexão subjetiva do indivíduo com a realidade exterior, através do empenho humano, sensível e prático, por meio dos quais ele se afirma como parte constituinte dela. Na percepção marxiana, a alienação tem raízes materiais e, portanto, não pode ser combatida ou transcendida em termos puramente abstratos. Pode-se afirmar, inclusive, que a alienação realiza um estado de confinamento do indivíduo na dimensão de abstração, ao estranhá-lo da dimensão concreta – a única que permitiria uma espécie de “consciência completa”, capaz de fazer os atravessamentos entre concreto e abstrato. Por outro lado, a dimensão abstrata em que o indivíduo permanece não é puramente do domínio das ideias, antes o contrário, é abstração do indivíduo em sua concretude, ou seja, nas conexões e interfaces que nela existem e influem. É, neste sentido, a abstração concreta incidente na vida ativa, na qual o indivíduo só corresponde à sua existência isolada, em um cotidiano simplificado e superficial – impossibilita do de acessar, portanto, a autoconsciência. O processo não somente o faz estranhado do coletivo humano da sociedade, universal, mas também de sua própria vida, particular, pois não a compreende em suas relações exteriores. É incapaz de tornar-se e perceber-se enquanto ser-para-outro e, assim, não se externaliza conscientemente; sua atividade, seu trabalho, contraditoriamente, passam a reproduzir as próprias condições que o alienam.
Considerações finais
Historicamente percebido como uma atividade humana de menor valor ontológico, o trabalho é entendido ao longo do pensamento filosófico puramente na dimensão de satisfação das necessidades básicas para a manutenção material e biológica da sociedade. Com o desenvolvimento das relações de produção capitalistas, o conceito trabalho é reimaginado pela necessidade de compreensão das origens do valor, e autores da economia política como Adam Smith trazem a compreensão da conexão entre o trabalho e a geração das riquezas nas nações. Considerado como obstáculo ao alcance da verdade do espírito nas investigações do idealismo alemão, é resgatado por Hegel, como forma de superar a dicotomia entre sujeito e objeto, em procura do “absoluto”, se apropriando da leitura da economia clássica inglesa. Por fim, Marx inverte a dialética hegeliana e o trabalho adquire centralidade conceitual para além da mediação do homem com o absoluto, mas como principal meio formador do homem, com o qual a sociedade se torna o que é.
A conceituação do trabalho por Marx evidencia um caráter duplo, ou melhor, uma dupla determinação do fenômeno, nas dimensões concreta e abstrata. Os conceitos de abstrato e concreto são formulados por Hegel, como categorias do pensamento que permitem empreender a lógica dialética. O abstrato se refere ao que foi isolado, retirado do contexto das relações sociais, e está associado, portanto, à ideia indeterminada, à forma pura. O concreto, por outro lado, engloba a relação de um objeto com outros, e, portanto, às determinações que nele estão presentes. Percebe-se que o trabalho, para Marx, se desenvolve nessas dimensões para se tornar, na sociedade capitalista, uma abstração concreta. Isto é, o trabalho abstrato, trabalho humano genérico e não personalizado, se reflete sobre o trabalho concreto, real e útil, como uma projeção das relações sociais de dominação. Esse processo origina, por fim, o surgimento da categoria do trabalho alienado como alienação concreta.
Marx e Hegel concordam quanto ao caráter formador do trabalho. Enten- dido por ambos como a objetivação da subjetividade humana no mundo – tanto individual como socialmente –, o trabalho dá o acesso à autoconsciência ao trabalhador. No entanto, também é pelo trabalho que o indivíduo perde sua autodeterminação e sua subjetividade em frente à determinação social que lhe é imposta pela exterioridade. Ao contrário de Hegel, no entanto, Marx acredita que o fenômeno da alienação não é imanente ao trabalho em si e que, como fruto das relações sociais de produção, tem fundamento histórico. Argumenta, portanto, que o trabalho alienado é um produto específico do modo de produção, especialmente no capitalismo, para a exploração do trabalho da classe trabalhadora e a manutenção das relações de dominação. Buscou-se nesse artigo explicitar esta estrutura lógica da conceituação do trabalho, buscando destacar as dimensões adquiridas pelo trabalho na modernidade filosófica e suas especificidades. Através dessa investigação procurou-se demonstrar a pertinência dos conceitos marxianos no entendimento do trabalho e das possibilidades teóricas de um entendimento da alienação do trabalho como um processo de abstração concreta. Espera-se resgatar o entendimento claro dessas categorias para a elucidação de questões contemporâneas sobre o trabalho, sobretudo em relação às suas dimensões concretas como potenciais territórios de superação da alienação e de transformação social e política da atividade humana.
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- A distinção também se reflete em uma série de correntes discordantes quanto a um suposto “surgimento” ou “origem” do trabalho. Schwartz (2011) aponta três entendimentos recorrentes: a visão neolítica, com o surgimento de ferramentas, uma sedentarista, com argumento no desenvolvimento da agricultura, e a terceira, que classifica o trabalho apenas na sua concepção capitalista, posterior à industrialização
- O entendimento de natureza de Marx ultrapassa aquele utilizado no cotidiano e o presente nas discussões ambientalistas, pois inclui, ao aceitar a natureza como “corpo inorgânico do homem” (Marx, 2004, p. 84), a natureza que é modificada pelo trabalho humano. Incorpora, por exemplo, os aspectos históricos, culturais e sociais da sociedade como partes de um contexto “natural” no qual o indivíduo se insere.
- Se, para Marx, a “verdade é sempre concreta” (Germer, 2003, p. 5), isto significa que a verdade não é a percepção sensível, ainda que esta remeta, em algum momento, ao concreto. As relações de produção, por exemplo, são concretas (abstrações tornadas concretas, sim, mas não menos concretas), ainda que se deem “às costas do trabalhador” e, portanto, seus expedientes “apareçam” como naturais, autoevidentes, ao trabalhador.
- Traduzido livremente do original “[T]he ego is the result of development, from immediate sensitivity to self-awareness, then to self-consciousness gained through a reciprocity of perspectives in interpersonal relationships, and finally to universality through participation in ethical and cultural life”.
- Traduzido livremente do original “As the individual abstracts his labour, he not only gains a sense of mutual recognition and the benefits of goods and services generated by another man’s work, but he also negatively, loses control of his own destiny”.
- Isto não significa, porém, que para Marx a propriedade privada esteja em patamar diferente de outros expedientes da alienação. As mediações de segunda ordem estão fortemente interconectadas em uma estrutura que não detém contornos claros definidos. Sua ênfase no apontamento e crítica da propriedade privada têm motivos históricos, sobretudo em contraposição às ideias, presentes tanto em Hegel e nos autores da economia política clássica, de que a propriedade privada é uma manifestação natural e propriamente humana. Também deve à sua crítica a Proudhon, no sentido oposto, com o argumento de que a simples abolição da propriedade privada, sem mudanças das relações sociais de produção que a mantinham, não era o caminho para o verdadeiro socialismo (Alves, 2008).
- Traduzido livremente do original “The labourer treats his labour as a commodity; as a consequence he has no interest in the work itself but only in the wage”