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Labor, Prescription and Alienation in Architecture: Critical Notes On The Architect’s Practice

author

Eric Crevels

Abstract

The present essay seeks to point out contemporary phenomena of decreasing autonomy by the alienation of everyday skills that, together with architectural drawing, promote the architect and urbanist’s figure to that of an expert, thus immobilizing its practice in a heteronomous form. It aims the exposition, with the critiques of Ivan Illich and Sérgio Ferro, how the architect’s practice contributes to the alienation and exploitation of the construction worker’s labour in detriment of the body-skill dialectics, which would allow for a closer relation between individual and society. Opposing this alienation processes, both in consuming as in the production of architecture, with studies about technology and anthropology, it argues in favor of a politics of transformation of architectures technology based on the relation between body, skills, learning and technique.

Trabalho, Receituário e Alienação Na Arquitetura: Apontamentos Críticos à Prática Do Arquiteto

Arquitetura Como Necessidade

O diagrama curricular da ​Bauhaus ​é familiar para a maioria dos estudantes de arquitetura. O seu inovador modelo figura nas aulas de história da arquitetura como uma provocativa possibilidade de um ensino de arquitetura constituído conjuntamente de pensar e fazer – uma reconciliação idílica de teoria e prática. Em uma tentativa de criar as bases para um design industrial, os estudantes da escola alemã entravam em contato com os materiais antes mesmo de se dedicarem a exercícios projetivos. A chamada “utopia social” (GROPIUS, 2013, p. 15) da Bauhaus forneceu inspiração para o bem conhecido ​estilo internacional,​ mas sua influência em muito perdeu o alinhamento ideológico com o ​fazer​, rumando ​em direção a mera questão de estilo.

Image 01: Tower of Babel under Construction Date: 1590 Artist: unknown Source: https://www.wga.hu/html/m/master/zunk_ge/zunk_ge4/ztower_b.html

Este desvio não se deu por puro acaso. Como Sérgio Ferro argumenta, o que chama-se de “estilo” está intimamente vinculado ao processo de divisão social do trabalho e à consequente acentuação da dominação dos trabalhadores no canteiro de obra (2006). Em um modelo de mercantilização da arquitetura, o ‘estilo’ tem uma função específica de afirmação da realização do capital e, dessa maneira, se trata de uma forma de investimento de capital econômico para acumulação de ​capital social (​ BOURDIEU, 1986). As tendências e estilos arquitetônicos participam da criação constante de uma necessidade de ajustar o espaço de uma determinada maneira, sem a qual seus proprietários não podem se assumir legitimamente enquanto elite; sem essa afirmação do capital, não apenas correriam o risco de perder seu ​status,​ pois estar à altura da moda é parte do ​habitus ​do burguês, como se tornariam simbolicamente pobres, no sentido em que estariam constantemente carentes de uma dita arquitetura contemporânea. Como a carência, segundo Illich (1990), é o sinal desumanizante da pobreza, o trabalho do arquiteto torna-se o da invenção de uma identidade espacial burguesa; uma identidade que deve ter aspectos imagéticos relacionando espaço e cliente (pois ser único e original também é necessidade), mas que também dialogue com uma unidade estética social identificável, aquela da classe burguesa. Como coloca Stevens (2003, p. 11), a arquitetura “tende a valorizar um conjunto de capitais simbólicos produzidos e julgados pelas classes dominantes”.

Segundo Ivan Illich (1990), a partir do pós-guerra as ideias de progresso e desenvolvimento assumem a forma de uma mercantilização do cotidiano. O fenômeno é acentuado, sobretudo, na esfera dos conhecimentos e habilidades que perpassam as produções marginais, contingentes, que fazem parte do trabalho de manutenção do trabalhador, ou seja, de sua reprodução. A reificação se dá, de acordo com Illich, pela invenção sistemática de ausências ou necessidades, ​criadas impositivamente. Os indivíduos passam a ser definidos pelas suas carências e não mais por suas capacidades produtivas em seu contexto material particular:

[O] fenômeno humano já não se define por aquilo que nós somos, que enfrentamos, que conseguimos, que sonhamos, nem pelo mito de que podemos produzir a nós mesmos a partir da escassez, mas pela medida daquilo que nos falta e de que, assim, necessitamos. E essa medida, determinada pelo pensamento analítico dos sistemas, implica uma percepção radicalmente nova da natureza e da lei, e prescreve uma política mais ocupada com a provisão de requerimentos definidos ​profissionalmente (necessidades) para a sobrevivência do que com reivindicações pessoais de liberdade, que estimulariam ações autônomas. (ILLICH, 1990, p. 6)

Essa nova condição humana, para Illich, está relacionada à complexificação do cotidiano por sua inserção na lógica da mercadoria. A transformação de todas instâncias da vida corriqueira em necessidades prescritas, para além da redução das possibilidades individuais, implica o desmanche do que Michel de Certeau (2012) denomina táticas de sobrevivência. Baseadas em produções marginais e microscópicas, são práticas que somam um enorme montante produtivo realizado relativamente fora das cadeias produtivas de valorização do capital. Representam uma rede de técnicas que resiste à reificação em mercadoria, essencialmente estratégica, tecno-científica. São chamadas de táticas precisamente em razão desta oposição, conquanto respondem à situação e se adaptam à complexidade da realidade. Constituem uma dialética prático-crítica profundamente reativa à dimensão concreta da vida e, como tal, são por essência avessas às abstrações normativas e classificatórias. Existem e são formadas em processos dinâmicos de percepção e resposta às complexidades da vida cotidiana. Dessa forma, são esquivas a leituras totalizantes e predeterminadas do planejamento e do pensamento empresarial.

Image 02: Building of Babel
Date: 1882
Artist: Edmund Ollier
Source: https://archive.org/details/dli.granth.77290/mode/2up

A agenda da invenção de necessidades profissionalmente prescritas surge em oposição a esse universo produtivo marginal, e o arquiteto e urbanista se insere nessa lógica como um de seus profissionais. A imposição de necessidades que “demandam por satisfação” (ILLICH, 1990, p. 4), definidas não pelos supostos necessitados, mas por profissionais especializados e sistemas de análise de dados, cria também a demanda por especialistas em satisfazê-las. A ideia de que as pessoas comuns são incapazes de compreender, planejar, construir e gerir o próprio espaço (seja público ou privado) é parte desse fenômeno e atua em detrimento da autonomia: com ela se valoriza o receituário técnico-estético dos arquitetos e urbanistas, então os únicos agentes legitimados para pensar o espaço.

A expansão do fenômeno é perceptível na crescente atuação dos arquitetos e urbanistas em camadas e espaços sociais até então ignorados pelo meio profissional, como nos programas de urbanização de favelas brasileiras. O próprio uso do termo ‘urbanização’ indica um modelo de gestão pública na forma de ‘satisfação de necessidades’: coloca as vilas e favelas como objetos de uma ação – ‘urbanizar’, ‘tornar cidade’ – e, ao fazê-lo, as classificam como não-cidades. A determinação do que é​ ser cidade ​parte das opiniões de especialistas da área, não daqueles que nela habitam, e a favela se torna, assim, não somente a​ -pólis, como também ​apolítica. ​A autonomia dos moradores sobre o espaço em que residem é tolhida pelo processo de criação da falta – a necessidade de ser cidade – cujos parâmetros são invocados daquilo que lhes é prescrito: a cidade fruto do desenho de arquitetos e urbanistas. A produção da favela, assim como a história, se dá ​primeiro como tragédia, depois como farsa ​(MARX, [1851] 2011) – primeiro como reprodução da força de trabalho em consequência da contingência do trabalhador, depois como território para a prescrição especializada.

Igualmente exemplar é o caso de várias das conhecidas ‘arquiteturas sociais’​. ​A chamada Lei da Assistência técnica, em vigor desde 2009, busca garantir o acesso das camadas da população de renda mais baixa aos serviços dos profissionais de arquitetura, em uma tentativa de reconhecer a abrangência do fenômeno da autoprodução 1 Em diversas ocasiões, muitos teóricos se utilizam do termo “autoconstrução” para se referir à arquitetura produzida sem o envolvimento de profissionais como arquitetos e engenheiros, em especial se tratando das construções da periferia. Os pesquisadores do grupo MOM, no entanto, reprovam seu uso, devido ao entendimento tácito que o termo gera de que a arquitetura produzida nessas instancias seria total ou majoritariamente construída pelo trabalho direto de seus proprietários/moradores, o que não é verdade. Pelo termo “autoprodução” espera-se englobar também o grande volume de construções que são empreendidas pelos seus proprietários diretamente, mas que fazem uso de mão de obra e trabalho de terceiros para sua realização, como pedreiros, mestres de obra, carpinteiros etc. Para mais detalhes, ver Kapp (2015). ​ no contexto brasileiro de produção habitacional. No entanto, ao fazê-lo, pressupõe sobretudo a necessidade da atuação de arquitetos e urbanistas na produção habitacional e qualifica os espaços que prescindem desses profissionais como marginais, inadequados, improvisados, caracterizando o que passa a ser conhecido como a “cidade informal”, ou mesmo os “aglomerados subnormais”. Fortalece, assim, a ideia de que o espaço deve ser planejado, construído e mesmo gerido por especialistas e que, na sua falta, estes devem ser garantidos pelo Estado, conforme presente no parágrafo 2 do Art 4. da lei, que postula: “deve ser garantida a participação das entidades profissionais de arquitetos e engenheiros, mediante convênio ou termo de parceria com o ente público responsável” (BRASIL, 2008).

O Programa Vivenda, aclamado como iniciativa de suposto impacto social responsável, ​se baseia em soluções modulares (“​kits”​) para realizar projetos de reforma para famílias de baixa renda. Os ​kits​, que montam a base metodológica do programa, referem-se à modelos básicos (como cozinha, banheiro, área de serviço) e não apenas refletem um modelo já hegemônico na moradia popular, repetido exaustiva e catastroficamente pelos programas habitacionais, como são flagrantemente focados no embelezamento dos espaços de acordo com a estética da cidade formal. Não surpreende que, na constituição dos ​kits, o tópico “revestimento” tenha lugar privilegiado ou que esteja quantificada, em seu website​, a metragem de revestimentos 2 Disponível em ​http://programavivenda.com.br/#about​, acessado em 30 de Abril de 2020  instalados no âmbito do programa​ , de maneira evidentemente publicitária. Logicamente, pelo próprio tempo hábil de produção e a escala de atendimento, os ​kits ​são soluções pré-concebidas para problemas pré-determinados ou, em outras palavras, ​receituários.​ Na atuação contemporânea do arquiteto, a forma habitual do receituário é seu produto e objeto de trabalho principal: o desenho. Resta, portanto, analisar este desenho:

[O] desenho [arquitetônico] pode assumir os padrões dominantes ou não, seguir a ‘função’ ou fazê-la seguir, ser qualificado como racional, orgânico, brutalista, metabólico ou como se queira no interior da confusão das pseudotendências, ser mais ou menos conformista em relação ao ‘utensílio’ que informa, ser modulado, modenado ou a-sistemático, ornar ou abolir o ornamento: a constante única é ser desenho para a produção. (FERRO, 2006, p. 110)

Ser desenho para a produção (de mercadorias) é a única propriedade comum a todos os tipos de desenho arquitetônico, seja ele referente à construção de habitações, equipamentos urbanos, centros comerciais ou edifícios industriais. A sua função é, fundamentalmente, servir à produção, pois é produto do modo de produção e é por ele determinado. O projeto, marca do profissional da arquitetura, não tem como objetivo (tampouco é capaz de) materializar o edifício. Conceder corpo físico é o objetivo do canteiro, por meio do trabalho (em geral, um trabalho duro). A produção do arquiteto não concretiza o espaço, mas seu ​devir​, sua virtualidade, e logo é uma reificação (MARCUSE, 2004). Projeta ​sobre o​ espaço: impõe-lhe toda informação ​a priori e​ delimita seu valor. O projeto é uma abstração, cujo destino é incidir sobre o canteiro. O objetivo final dá-se à medida que é o desenho…

[…] ​que orientará o desenvolvimento da produção. Nesse primeiro emprego, conta pouco o que se queira chamar de qualidade ou adequação. […]. O que vale é que esse desenho fornece o solo, a coluna vertebral que a tudo conformará, no canteiro ou nas unidades produtoras de peças. Em particular – e é o principal – juntará o trabalho antes separado, e trabalho a instrumento. (FERRO, 2006, p. 109)

O desenho/projeto em si não é uma condição básica para a construção – inclusive em edifícios celebrados entre críticos e teóricos da arquitetura, como é o caso das catedrais góticas. Também a chamada autoprodução do espaço, marginal, abstém-se sistematicamente de arquitetos e engenheiros e corrobora o fato (BALTAZAR, 2016). Acontece que o desenho arquitetônico, apesar de ser desenho para a produção, pouco se refere, em realidade, à construção do edifício propriamente dita. Não estão nele incorporadas as técnicas dos pedreiros, dos carpinteiros e de outros ofícios. Apresenta senão a forma finalizada da obra e desconsidera os processos e as configurações internas do canteiro de obras. Define apenas os aspectos formais, pois tem como função constituir e implantar a forma, controlá-la, para assim dominar o trabalho e a hierarquia do canteiro de obras (FERRO, 2006). A implantação do desenho é bem descrita por Santos:

A linguagem arquitetônica e matemática (cada vez mais sofisticadas) e todos seus instrumentos são postos a serviço da produção, dando distinção ao grupo dos diplomados em relação aos oficiais práticos da construção. A introdução desses artifícios logo frutifica em submissão total do canteiro de obras e seus agentes diretos, aumentando sua heteronomia e com isso o rebaixamento das condições de trabalho. (SANTOS, 2008, p. 32)

O trabalho do arquiteto, distante dos ofícios da construção, dá o argumento matemático, normativo, formal ou filosófico para a dominação do trabalho. Mantém, a partir dessa designação autoritária, a hegemonia do arquiteto e daqueles que assumem o comando do canteiro com o instrumento que o arquiteto fornece. Esse fenômeno independe da vontade ou intenção do próprio arquiteto. As considerações sociais e políticas do seu desenho, assim como as tipológicas, não ultrapassam a dimensão do conteúdo. Mantido o lugar do desenho na cadeia produtiva da arquitetura, permanecem seus impactos sobre o canteiro de obra, à revelia do discurso. O desenho, como instrumento técnico, não é neutro. A tônica normativa, hierárquica e impositiva que carrega deriva de seu uso, de sua posição enquanto instrumento de legitimação.

A instituição da norma, e todo esforço necessário ao seu questionamento, acaba por manter a construção civil brasileira no patamar da manufatura serial (…). Tal como era a tendência na Europa, a pesquisa colaborou para que a norma técnica substituísse os métodos empíricos patenteados. Ao contrário dos discursos em favor da norma, a quebra das patentes não significa a abertura do conhecimento técnico ao domínio público, mas a concessão de monopólio a um determinado grupo. A norma parametriza a conduta do novo personagem – o técnico neutro ou perito. A perícia técnica, base da legitimação social do grupo dos diplomados, é o que autoriza o Estado a conceder o “monopólio de saber” a esse grupo. Por isso o empenho na regulamentação profissional, homologada em 1933 com a criação do Sistema CONFEA-CREAs. (SANTOS, 2008, p. 306)

A figura do “técnico neutro” citado acima, indica uma posição privilegiada na hierarquia social do canteiro de obras e revela o caráter epistemológico de uma tecnologia de produção do espaço. O especialista, empoderado por sua própria linguagem, legitima a sua superioridade sobre os demais trabalhadores da construção civil, armado de sua suposta capacidade para receitar soluções às necessidades do espaço.

A apreensão metonímica da tecnologia pelos seus produtos em detrimento a uma leitura etimológica do termo turva e enfraquece sua discussão filosófica. Costumeiramente considerada como um dispositivo imanente à sociedade, a tecnologia é aceita quase como um termômetro do desenvolvimento humano, ou uma espécie de escala teleológica do progresso histórico. Esta visão tende a deslocar o foco de análise de suas características estruturantes, seu ​logos,​ para uma leitura superficial de seus aparatos e metodologias. De acordo com Andrew Feenberg (2002), existe hoje uma estagnação do entendimento filosófico da tecnologia, reduzido a duas leituras superficiais igualmente rasas, irredutíveis em seus argumentos e baseadas na neutralidade da tecnologia. A primeira é fundamentada no conceito da ​instrumentabilidade, da tecnologia como mera ferramenta, isente de quaisquer atributos de agência ou influência sobre a sociedade. A segunda visão, também determinista, por sua vez acredita o fator tecnológico como objeto pleno, que carrega vieses e determinações socioeconômicas e é portanto influente sobre a sociedade, mas em si mesmo imune à agência política. Nesta perspectiva, resta à sociedade apenas a decisão sobre a sua utilização ou abandono, em cálculo eterno dos prós e contras de sua interferência nas relações sociais. O autor aconselha direcionar a análise para a produção epistemológica da tecnologia, ou seja, para os ideários e contextos sócio-produtivos de sua concepção, condicionantes do que chamamos corriqueiramente de “avanço” ou “desenvolvimento”. Também destaca a não perder de vista a agência e influência da tecnologia sobre a sociedade, material e subjetivamente. Em suma, o autor nos chama atenção para a relação dialética entre tecnologia e modo de produção, no lugar de meramente aceitar sua neutralidade ou imutabilidade.

Aceita duplamente a influência da sociedade sobre a tecnologia e vice-versa. A alienação do trabalho e da técnica, dessa forma, não é característica fundamental da tecnologia mas, ao contrário, um aspecto registrado na sua produção e reprodução social. Com isso, muda o objetivo da teoria crítica da tecnologia para o questionamento da produção da própria tecnologia, ou, como diz o autor, para uma “política da transformação da tecnologia” (2002, p. 15).

Image 03: Weltchronik in Versen, Szene: Der Turmbau zu Babel, Date: circa 1370, Artist: Meister der Weltenchronik, Source: The Yorck Project (2002) 10.000 Meisterwerke der Malerei (DVD-ROM), distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH. ISBN: 3936122202.

Tendo em vista os fenômenos apontados por Illich e as leituras de Sérgio Ferro sobre o papel do desenho, em quais bases poderia se sustentar tal política de transformação da tecnologia na arquitetura? Partindo do pressuposto que o projeto arquitetônico foi tornado instrumento para a dominação em uma sociedade progressivamente alienada de suas capacidades cotidianas do ​fazer,​ compreender as relações experimentais/estéticas entre indivíduo (corpo) e o ato de fazer pode esclarecer alguns caminhos a se tomar.

Corpo, Habilidade E Alienação

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2002) afirma que o corpo não deve ser entendido como mera anatomia, mas antes enquanto hábito: composto por uma rede de habilidades e procedimentos que estão intimamente relacionados com a construção social do cotidiano e da realidade. Nessa linha, o antropólogo Tim Ingold (2000) apresenta um entendimento aprofundado de como as habilidades são inerentemente aspectos sociais do homem. Seu argumento é que o homem não somente desenvolve suas habilidades de maneira social, mas também a si mesmo em um processo dialético de descoberta dessas habilidades, em um movimento social de invenção ​simbólica do corpo. Ingold concebe as habilidades não como adquiridas, pois o aprendizado de uma habilidade não é uma ação à qual o sujeito incorre por si só, mas um desenvolvimento do próprio indivíduo em relação aos objetos componentes da dita habilidade – estes constituídos socialmente. Isto é, uma habilidade não é algo que se possa ‘injetar’ no sujeito, como que preenchendo um espaço vazio, mas a construção desse espaço, simultânea ao seu preenchimento. Pelo envolvimento ativo do sujeito com aquilo que percebe relacionado a determinada habilidade, é que ele é capaz de criar a habilidade dentro de si; inventá-la, por assim dizer.

Por habilidade não me refiro a técnicas do corpo, mas às capacidades de ação e percepção de todo o ser orgânico (corpo e mente indissociados), situado em um ambiente ricamente estruturado. Como propriedades dos organismos humanos, as habilidades são assim tão biológicas como culturais. […] As habilidades não são transmitidas de geração a geração, mas recriadas em cada uma, incorporadas no ​modus operandi d​ o organismo humano em desenvolvimento pelo treino e experiência na performance de tarefas específicas. (INGOLD, 2000, p.5. tradução minha.) 3 “By skills I do not mean techniques of the body, but the capabilities of action and perception of the whole organic being (indissolubly mind and body) situated in a richly structured environment. As properties of human organisms, skills are thus as much biological as cultural. (…) Skills are not transmitted from generation to generation but are regrown in each, incorporated into the modus operandi of the developing human organism through training and experience in the performance of particular tasks.”

Portanto, habilidades e saberes são construções individuais, frutos da agência do próprio indivíduo, de maneira única e gradual, e também sociais, pois construídas a partir de constante percepção e apropriação de elementos retirados do contexto social. O aprendizado é um processo de ​formação dentro do ambiente ​(INGOLD, 1999); uma maneira pela qual o indivíduo incorpora c​ omponentes construídos socialmente e presentes no seu contexto para dar forma a uma habilidade:

As pessoas desenvolvem suas habilidades e sensitividades pelas histórias de contínuo envolvimento com os constituintes humanos e não humanos dos seus ambientes. Pois é pelo engajamento com estes múltiplos constituintes que o mundo é conhecido pelos seus habitantes. (INGOLD, 1999, p.10. tradução minha.) 4 “[P]eople develop their skills and sensitivities through histories of continuing involvement with human and non-human constituents of their environments. For it is by engaging with these manifold constituents that the world comes to be known by its inhabitants.”

Ingold assume que a própria estrutura cognitiva individual é arranjada dessa maneira. O aprendizado não se refere somente ao objeto puro, o saber a ser incorporado, mas também à construção das próprias capacidades cognitivas, isto é, à identificação dos meios com os quais é possível e favorável aprender em determinado contexto social e em relação a realidades específicas. Paradoxalmente, trata-se de ​aprender a aprender​, pois, ao envolver-se com os elementos contextuais de uma habilidade, o indivíduo não somente se relaciona com eles, mas 5 O entendimento ingoldiano apresenta uma consonância marcante (ainda que não confessa) com as leituras de Hegel e especialmente de Marx sobre o trabalho, em sua forma não alienada. Para os autores alemães o trabalho forma o homem enquanto indivíduo e ser social (ou ​ser genérico​, para Marx). É pela atividade que o homem se relaciona com o mundo (a natureza) e com os demais indivíduos, em uma relação dialética, e assim é capaz de reconhecer a si mesmo no mundo que constrói. Esse reconhecimento é a base para um reconhecimento de si enquantoser​partíciped​omundoedasociedadee,aoreconhecer-sedessamaneira,reconhecetambéma participação da natureza e dos outros homens na construção de si mesmo, ou seja, reconhece não apenas a si no mundo, mas o mundo em si mesmo. Para mais informações sobre o entendimento desses autores, ver MESZÁROS, (1992).  com o seu corpo e mente em contato com tais elementos​ . A formação do indivíduo em sociedade leva à incorporação de uma gama de habilidades e técnicas que são consideradas partes componentes do que se espera de uma pessoa funcional em determinada cultura. Tal abordagem revela que a própria cultura, construída sobre essa estrutura cognitiva, não é um sistema suprabiológico ou metafísico, mas antes a “medida da diferença” entre organismos que surgem de seu posicionamento frente a frente – sua interação – e com “componentes não humanos do ambiente, em campos mais abrangentes de relacionamento” (INGOLD, 2000, p.10).

Como observa Ingold (1999), nada impede que as habilidades socialmente desenvolvidas pelos indivíduos estejam arranjadas em uma estrutura de dominação. O fenômeno pode ser pensado em termos de distinção de classe, no Brasil, com os conceitos de “ralé estrutural” e “batalhadores” desenvolvidos por Jessé Souza (2009, 2010) a partir da teoria social de Pierre Bourdieu. Souza argumenta que a população brasileira mais pobre se distingue das classes mais altas não apenas pelo poder econômico. Falta-lhe, sobretudo, as habilidades ou “capacidades” que o acesso às posições de privilégio pressupõem, tais como “disciplina, auto-controle e pensamento prospectivo” (SOUZA, 2013, p. 65). A carência se reflete na incapacidade de planejamento, concentração, crítica e mesmo na dificuldade de expressão, situando o pobre em uma posição estrutural de fragilidade social e econômica, e interditando sua ascensão social. Da formação acadêmica ao suposto ‘espírito empreendedor’, as classes mais altas monopolizam o arcabouço técnico-cultural e as formas de sociabilidade que perpetuam sua posição privilegiada na sociedade.

Nesse contexto de alienação das táticas cotidianas de produção, é natural que a estrutura cognitiva dos corpos em relação aos espaços permaneça embotada, deslocando as habilidades relativas à produção material do espaço para a abstração do receituário técno-científico. Este fenômeno não elimina para os trabalhadores da construção civil a ameaça da alienação. Pelo contrário, pois a base da alienação se encontra justamente na instituição do trabalho assalariado (MESZÁROS, 1992). Ferro (2006) argumenta que os operários da construção civil estão, a todo momento, sob uma pressão ativa que busca a alienação de seu trabalho, por diversas frentes e sob a lógica da manufatura, em acordo com os postulados de Marx (2013). Para que seja possível a extração (maximizada) da mais valia no canteiro de obra, o trabalhador deve ter seu trabalho reduzido, idiotizado – transformado, tanto quanto possível, em força de trabalho pura.

Os conhecimentos assim alienados são precisamente aqueles que caracterizam o trabalho qualificado no ofício. De acordo com Adorno em ​O Funcionalismo Hoje (​ 1967), o ofício não pode ser entendido como apenas “o conjunto das fórmulas estereotipadas” ou “o conjunto das ‘práticas’ destinadas a poupar as forças do compositor”, pois “a especificidade de qualquer tarefa concretamente colocada exclui tais fórmulas” (ADORNO, 1967, p. 116). Em outras palavras, ele argumenta que o ofício não pode ser apenas uma operacionalidade mecânica, pois se baseia constantemente na realidade, ou seja, ​concretiza-se ​sempre que confrontado com a “especificidade” das tarefas que lhe são demandadas, quando são elas também concretas. A abstração das tarefas, sua retirada do cotidiano operacional do artesão, é justamente o que marca a divisão entre ofício e manufatura. Para alienar o artesão, faz-se necessário transformar suas tarefas em um conjunto não só de fórmulas e práticas, mas de movimentos e técnicas homogeneizados e congelados, rasos em ​racionalidade.​ São retiradas das atribuições dos artífices as ​dificuldades técnicas ​que incentivam a inventividade; essas passam a ser resolvidas longe do canteiro, por profissionais especialistas, como engenheiros e arquitetos. A lógica segue o princípio de ​facilitar pela fragmentação, presentes na linha de produção e nos estudos de ergonomia do trabalho (ADORNO, 1967, p. 115). A produção do trabalhador é amputada dos aspectos que antes configurariam sua ​maestria,​ isto é, sua versatilidade em lidar com diferentes situações de produção. Este movimento é realizado de duas maneiras, representantes dos pólos de seu trabalho. Por um lado, acentuam-se os procedimentos ​produtivos ​do trabalho, aqueles que de fato alteram a matéria. São aqueles que efetivam a divisão entre os trabalhadores, no chão de fábrica e no canteiro, e que são contabilizados como o trabalho propriamente dito: assentar tijolos, preparar o concreto e transportar cargas. Por outro lado, é-lhe retirada a parcela intelectual do ofício, o trabalho que coloca as técnicas isoladas em conexão e coerência entre si e com o contexto em que são utilizadas.

No caso específico, o operário da construção civil não somente é afastado de seu produto, mas desconhece mesmo, frequentemente, sua razões de projeto, cálculo, oportunidade etc. Não tem, nem pode ter, portanto, qualquer influência que pese nos seus rumos. (FERRO, 2006, p. 93 nota 36)

Essa insistência inverte o desenvolvimento livre do indivíduo na produção, pois a construção cognitiva da habilidade – a incorporação autônoma – representa justamente o caminho oposto da alienação. Indica o combate às potencialidades formativas, e portanto emancipatórias, dos aspectos pedagógicos da habilidade. O problema retorna para a filosofia da tecnologia. Como a tecnologia não é neutra, tampouco o são os componentes incorporados nas habilidades e técnicas da produção capitalista. De maneira similar, como no contexto da “ralé brasileira”, o trabalhador da construção é também subtraído de uma série de habilidades, capacidades e conhecimentos que, ainda que participem da totalidade de seu trabalho, seriam (na perspectiva do capitalismo) problemáticos se delegados aos operários. O projeto arquitetônico, conforme nos demonstra Ferro (2006), vem assim em auxílio da hierarquia do capital: a divisão do trabalho é levada a patamares fordistas, em operações seriadas e desligadas entre si e da totalidade da produção. Separa assim os trabalhadores, criando a figura do “trabalhador parcial”, apenas para novamente ajuntá-los, no chamado “trabalhador coletivo” (MARX, 2013), com o cuidado, porém, de manter-se entre eles. Isola e reveste a mão de obra, para então reconectá-la segundo sua própria ordem. Age como estrutura, ou “cola”, para usar o termo de Ferro, que mantém e suporta a hierarquia do canteiro de obras mas mantém a permeabilidade para a entrada do capital e a retirada da mais valia.

Somente ao estabelecer essa hierarquia é que o desenho é capaz de realizar esse movimento de alienação, pois, para mantê-la, é necessário classificar seus níveis e deixá-los estanques. Impedir o contexto comunicativo, premissa da prática criativa, é fundamental, de modo que o comando continue centralizado e esteja protegido pela própria pirâmide da autoridade. Para a separação do trabalho no canteiro, não basta apenas a diferenciação em nível de ofício ou habilidade. O trabalho manual é perigoso, mesmo que exprimido no detalhe, pois permite ao corpo o aperfeiçoamento – o desenvolvimento dialético entre habilidade e sujeito. O especialista sofre com o embotamento da crítica, mas ela ainda não é completamente subtraída de seu trabalho. Permanece enclausurada no detalhe, sim, mas ali floresce continuamente, ao ser incorporada, seja para explorar ainda mais seu isolamento ou para explodi-lo, em movimento de associação com outras habilidades, e por fim revolucioná-lo. Sérgio Ferro, mais uma vez, concorda com o argumento, ao dizer que a

construção acertada acorda, revela, reúne. Mas, mesmo na nossa construção explorada e cujo objetivo não é o acerto, o operário não pode evitar que nele alguma coisa acorde, se revele e reúna. (2006, p. 145)

Esse perigo precisa ser evitado, ou, pelo menos, contido. Para manter a estrutura coesa e imutável, o fluxo de informação deve ser segregado, de maneira que a conexão entre os trabalhadores da base passe inevitavelmente por seu superior – que não por mero acaso é também ​supervisor​. A dominação no nível da linguagem. O trabalhador coletivo mantém-se sob a regência heterônoma somente se o universo de trabalhadores parciais incorporados carece de intercomunicação. Para tanto, e de modo que a produção continue operante, há de restar apenas uma linguagem única, ou, mas precisamente, uma única voz, que alcance a todos, de forma descendente. Toda relação horizontal, assim, é feita estrangeira – o mito da Torre de Babel é paradigma e arquétipo de toda produção capitalista da arquitetura. É também necessário que essa voz recite precisa e somente o direcionamento necessário à produção. Como sabemos, esse papel é realizado pelo projeto:

O progressivo apartamento entre o desenho e o canteiro de obras é viabilizado pelo desenvolvimento de uma nova linguagem, fundamentada na linguagem matemática. O projeto, a perspectiva, a nova linguagem de inspiração clássica antiga ajudam a desbancar a antiga ordem dos canteiros. (SANTOS, 2008, p.31)

Em termos de incorporação cognitiva, há poucos componentes apropriáveis para o trabalhador além daqueles permitidos e determinados pelo desenho do arquiteto que, como visto, é fundamentalmente um desenho para produção de mercadorias. Os aspectos tecnológicos da dominação do canteiro, presentes em todo o processo construtivo, permeiam estes componentes e consigo trazem a lógica do capital (junto à alienação) para o processo de desenvolvimento e aprendizado. O trabalhador assim incorpora os elementos estruturais de sua própria alienação, de modo tal que até mesmo a estrutura hierárquica e a divisão do trabalho intelectual e manual na produção da arquitetura figuram em seu cotidiano como fenômenos naturais e inquestionáveis.

Uma Possibilidade De Atuação

A escolha exemplar da Bauhaus para a abertura deste ensaio não se deu por acaso. Procurou-se argumentar sobre como a atuação do arquiteto e urbanista é marcada pela tecnologia enviesada do ​desenho para a produção,​ seu principal instrumento, e quais os fenômenos sociais envolvidos na abstração que é a representação. Apesar de ser o objetivo principal do trabalho, busca-se agora apontar, como alternativa, uma forma de envolvimento direto do arquiteto com a produção material e com os indivíduos diretamente relacionados, artesãos e operários da construção. O resgate do ​concreto na prática arquitetônica, em sua dimensão crítica e histórica, invoca a possibilidade de uma arquitetura para além do projeto reificado, além do desenho para a dominação. Desta forma, enseja, compreendendo a dimensão dialética do aprendizado com o conceito de ​incorporação ​de Ingold, um novo paradigma tecnológico da arquitetura, que tem como objetivo e viés o desenvolvimento individual e coletivo dos envolvidos junto à produção do espaço, dos objetos que o preenchem e do cotidiano que o permeia. A aproximação do arquiteto com as práticas construtivas e com a produção material fornece um caminho lógico para uma tecnologia não alienada da arquitetura, e a pertinência de se pensar a arquitetura dessa maneira surge da sua oposição à codificação e abstração da técnica, fundamental ao projeto. Está em acordo com o entendimento de Silke Kapp (2005) da arquitetura como “todo espaço modificado pelo trabalho humano”, pois toma o trabalho, a produção, como base para a crítica e mesmo a prática da arquitetura. Ao destacar o envolvimento pela atividade, seja individual ou coletivo, na definição de arquitetura – o trabalho que modifica o espaço – Kapp centraliza o processo pelo qual o espaço é produzido como um produto social, com destaque ainda para sua produção ​sem interferência por parte dos diplomados, ​a chamada autoprodução do espaço.

A questão premente é a possibilidade de repensar o trabalho na arquitetura (e, em consequência, a própria arquitetura) para que ele assuma, no lugar de sua versão alienada, um caráter emancipador. A transcendência da alienação é, afinal, o principal objetivo tanto da obra como da ação política marxiana (FROMM, 1962). Mas a questão não é passível de resposta imediata, pois exige uma abordagem crítica que não se resguarde das dificuldades concretas de seu empreendimento. Como diz Meszáros (2006, p. 165), “devemos compreender que: o único poder capaz de superar praticamente (‘positivamente’) a alienação da atividade humana é a própria atividade humana autoconsciente”.

Mesmo que reduzida e alienada, na produção material permanece sempre algum potencial emancipatório residual capaz de ativar a consciência, pois envolve conhecimentos que, de uma maneira ou outra, se referem ao material e lidam com ele​. ​São conhecimentos e técnicas que não se apreendem senão pela prática, ou seja, pela dupla descoberta e criação, individual e coletiva, pela ginga entre o corpo e o ​ambiente ​social e material historicamente dado. O operário, o artesão ou o artífice (ainda que em níveis diferentes) se envolvem com os materiais e, consequentemente, com a dimensão social neles presente. Nessa relação desenvolve-se a atividade que os conecta com a realidade concreta e sobre a qual efetivamente podem se objetivar. A tecnologia da produção material abstrata não é capaz de apagar completamente o ofício, pois ele é sua gênese, e, portanto, o paradigma do ofício é sua principal contradição, uma fragilidade permanente em sua estrutura.

Sua potência está na perspectiva da produção material do espaço e dos artefatos que o qualificam. Ingold, em ​Textility of making ​(2009), afirma que a produção material do artífice (​craftsman)​ é como um nó em uma costura, em um processo de tecelagem. Este nó é composto pelas linhas que representam os materiais utilizados, assim como pelas técnicas, ferramentas e outras construções sociais a ele associadas. Na perspectiva de um artífice, o material não se resume a uma constituição física, mas inclui igualmente relações contextuais: para quê serve, o que acontece quando é trabalhado, como pode ser manipulado, obtido, transformado, utilizado etc. As qualidades do material são definidas pela realidade sociocultural do respectivo meio e pela experiência, tanto no sentido laboratorial, de teste, como no sentido cotidiano, de acontecimento, de presença, e de conhecimentos e saberes acumulados. O trabalho no material e as diversas formas de uso que assume no dia a dia do artífice constróem a ideia do que ele é. Trata-se de uma percepção concreta, não abstrata. Ao mesmo tempo, o nó que Ingold sugere é uma estrutura aberta, pois não impede que as linhas que por ele passam (materiais, técnicas, ferramentas etc.) continuem seus percursos e estejam disponíveis para se envolver em outros nós, em outras construções e criações.

Nesta perspectiva, arte e ofício (sem distinções) 6 O trabalho etimológico de Raymond Willians (1983) indica que o termo ‘arte​’ ​(​art​), desde o século XIII, se referia aoconhecimento sobreo​ fazerd​ ascoisas, envolvendo suastécnicas, esere feria basicamente àqualquer habilidade produtiva.Neste contexto,o‘artista​’é​ efetivamente idênticoa o‘artesão’​(​artisan)​.Já‘ciência’(​science,scientia​), figura a partir do século XIV, usado em intercâmbio com ​art​, para descrever um corpo de conhecimento ou habilidade e que, a partir do século XVII, passa se distinguir de ‘arte’ como uma habilidade que requer conhecimento teórico, ao passo que ‘arte’ representa as habilidades que requerem prática (1983, p. 40 – 42, 276 – 278). Nesta leitura, a arte seria conjunto de conhecimentos que permitem reproduzir determinado ofício na prática, ao passo que a ciência abarca os conhecimentos teóricos sobre o mesmo ofício. devem desafiar as bases da tecno-ciência, com o objetivo de reacordar os sentidos e a percepção para permitir um crescimento do conhecimento pelo fazer. Não se trata somente de inserir o cotidiano na produção de conhecimento, mas também do inverso, ou seja, tornar o conhecimento parte ativa da vida cotidiana. Para Ingold, isso possibilitaria aos indivíduos deter formas de conhecimento que partam de suas experiências e que retornam a elas como reflexão e construção normativa. Ensejaria, portanto, a autonomia e o que Marx enxerga como caráter formador do trabalho (MESZÁROS, 2006), onde o indivíduo descobre a si mesmo e o mundo ao seu redor, e se objetiva nesse mundo.

Essa possibilidade é urgente sobretudo nos contextos de vulnerabilidade social, onde o paternalismo, o tecnicismo e a pura má-fé contribuem para um cenário de progressiva alienação e heteronomia. O contato com as contingências da produção concreta, seja de objetos, de espaços ou das próprias iniciativas, em sentido de sua organização e realização, coloca em questão a realidade dos contextos em que as coisas são feitas, para além das resoluções estéticas e funcionais relativos puramente à forma e ao uso, ou seja, à forma mercadoria e ao consumo. Traz para a perspectiva do próprio arquiteto as condicionantes da produção, severamente ignoradas durante sua formação, nos debates teóricos sobre a profissão e, principalmente, na sua atuação usual.

O saber-fazer potencializa a crítica, pois permite algum distanciamento da condição cotidiana de dependência, fazer improvisado, subvalorizado e de contingência. Ele carrega o índice do trabalho livre e, assim, aproxima-se da arte que, na concepção de Marcuse, tem “poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida para definir o que é real” (1999, p. 21). Apresenta um mundo fictício que não é ilusão, pois refere-se à potência do trabalho formador, do mundo enquanto objetivação da humanidade pelo trabalho. Por isso mesmo, tem caráter de utopia: os rastros de uma utopia que, pela sua própria interdição, produz um impulso político, são também rastros de um trabalho real, livre. Aparecem justamente pelo contraste, por seu brilho fugaz em meio à opacidade da sociedade, e remetem ao mundo das potencialidades humanas. Fazem aflorar suas contradições – tensionam o ​status quo e​ revelam seus pontos estruturais.

[A] arte pode ser revolucionária […] quando apresenta ausência de liberdade do existente e indica as forças que se rebelam contra isso; quando rompe com a realidade reificada e aponta horizontes de transformação; quando subverte as formas de percepção e compreensão e deixa transparecer um teor de verdade, de protesto e de promessa na linguagem e na imagem. (CHAVES; RIBEIRO, 2014, P. 15)​

A defesa do caráter experimental da arquitetura e, em última análise, das ciências sociais, não é novidade no pensamento e na prática acadêmica, sobretudo em ideologias libertárias. Segundo Sérgio Ferro (2006), é necessário apostar em formas experimentais de produção da arquitetura que apontem uma nova maneira de construir, para romper com a dominação do canteiro de obras. Boaventura de Sousa Santos (1980) também defende a experiência como método investigativo. Seu argumento é que, enquanto a sociedade se encontra emaranhada em inúmeros expedientes de dominação, é dever da ciência explorar suas brechas e praticar suas possibilidades, ​inventar ​novas formas de sociedade que, mesmo pesando-lhes a estatística do fracasso, possam servir de ensaio (e ensejo) para transformações sociais reais. Também Zizek (2013) aponta que, para transpor um modo de produção, faz-se necessário encontrar os pontos (ou nós) que, pressionados, exerçam pressão por toda sua estrutura. Para tanto, é imprescindível a procura, a experiência e, em especial, uma profunda autocrítica. O que esses autores indicam é que a prática que se propõe a apontar os caminhos para a autonomia ganha potência quando realizada em formato experimental, pois este lhe permite certo afastamento crítico da realidade social contingente. A experiência realiza uma projeção virtual — devir – sobre terreno concreto. Faz despontar as mais imprevistas contradições e é capaz de materializar-se como negação da realidade, na forma de imaginário, possibilidade. Logo, é preciso experimentar, para que se possa apontar (projetar – lançar à frente) formas de atuação transformadoras da condição heterônoma.

Referencias

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  1. Em diversas ocasiões, muitos teóricos se utilizam do termo “autoconstrução” para se referir à arquitetura produzida sem o envolvimento de profissionais como arquitetos e engenheiros, em especial se tratando das construções da periferia. Os pesquisadores do grupo MOM, no entanto, reprovam seu uso, devido ao entendimento tácito que o termo gera de que a arquitetura produzida nessas instancias seria total ou majoritariamente construída pelo trabalho direto de seus proprietários/moradores, o que não é verdade. Pelo termo “autoprodução” espera-se englobar também o grande volume de construções que são empreendidas pelos seus proprietários diretamente, mas que fazem uso de mão de obra e trabalho de terceiros para sua realização, como pedreiros, mestres de obra, carpinteiros etc. Para mais detalhes, ver Kapp (2015).
  2. Disponível em ​http://programavivenda.com.br/#about​, acessado em 30 de Abril de 2020
  3. “By skills I do not mean techniques of the body, but the capabilities of action and perception of the whole organic being (indissolubly mind and body) situated in a richly structured environment. As properties of human organisms, skills are thus as much biological as cultural. (…) Skills are not transmitted from generation to generation but are regrown in each, incorporated into the modus operandi of the developing human organism through training and experience in the performance of particular tasks.”
  4. “[P]eople develop their skills and sensitivities through histories of continuing involvement with human and non-human constituents of their environments. For it is by engaging with these manifold constituents that the world comes to be known by its inhabitants.”
  5. O entendimento ingoldiano apresenta uma consonância marcante (ainda que não confessa) com as leituras de Hegel e especialmente de Marx sobre o trabalho, em sua forma não alienada. Para os autores alemães o trabalho forma o homem enquanto indivíduo e ser social (ou ​ser genérico​, para Marx). É pela atividade que o homem se relaciona com o mundo (a natureza) e com os demais indivíduos, em uma relação dialética, e assim é capaz de reconhecer a si mesmo no mundo que constrói. Esse reconhecimento é a base para um reconhecimento de si enquantoser​partíciped​omundoedasociedadee,aoreconhecer-sedessamaneira,reconhecetambéma participação da natureza e dos outros homens na construção de si mesmo, ou seja, reconhece não apenas a si no mundo, mas o mundo em si mesmo. Para mais informações sobre o entendimento desses autores, ver MESZÁROS, (1992).
  6. O trabalho etimológico de Raymond Willians (1983) indica que o termo ‘arte​’ ​(​art​), desde o século XIII, se referia aoconhecimento sobreo​ fazerd​ ascoisas, envolvendo suastécnicas, esere feria basicamente àqualquer habilidade produtiva.Neste contexto,o‘artista​’é​ efetivamente idênticoa o‘artesão’​(​artisan)​.Já‘ciência’(​science,scientia​), figura a partir do século XIV, usado em intercâmbio com ​art​, para descrever um corpo de conhecimento ou habilidade e que, a partir do século XVII, passa se distinguir de ‘arte’ como uma habilidade que requer conhecimento teórico, ao passo que ‘arte’ representa as habilidades que requerem prática (1983, p. 40 – 42, 276 – 278). Nesta leitura, a arte seria conjunto de conhecimentos que permitem reproduzir determinado ofício na prática, ao passo que a ciência abarca os conhecimentos teóricos sobre o mesmo ofício.